17 de abril de 1997 foi um dia muito especial no Brasil. Culminou, em Brasília,
a marcha nacional promovida pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra)
por justiça, emprego e reforma agrária. Mais de 100 mil pessoas
aplaudiram nas ruas da capital federal os agricultores que, vindos de diferentes
regiões do país, caminhavam há mais de um mês.
O Brasil é um país de dimensões continentais. Possui 600
milhões de hectares de terras cultiváveis. No entanto, desde que
foi ocupado pelos portugueses, em 1500, nunca conheceu uma reforma agrária.
Basta dizer que apenas 1% dos proprietários rurais é dono de 44%
das terras do país. Há latifúndios com extensão
superior ao território da Holanda ou da Bélgica.
Habitado por 170 milhões de pessoas, o Brasil abriga 53 milhões
vivendo abaixo da linha da pobreza, com renda mensal inferior a US$ 60, e 32
milhões sobrevivendo abaixo da linha da indigência, com renda diária
inferior a US$ 1. São 15 milhões de sem-terra, excluídos
do campo nos últimos trinta anos, por força da extensão
dos latifúndios, da construção de barragens e da inadimplência
frente à alta dos juros bancários.
O movimento dos sem-terra
O MST nasceu em 1984, por iniciativa de trabalhadores rurais vinculados à
Igreja católica. Desde então, ele organiza famílias sem-terra
em acampamentos à beira de estradas e em assentamentos que funcionam
no sistema de cooperativa. Há, atualmente, cerca de 300 mil famílias
vivendo sob tendas de plástico preto junto às rodovias. E existem
mais de 1.500 assentamentos rurais espalhados pelo país, nos quais cerca
de 100 mil crianças e adolescentes são escolarizados.
O MST não espera que o atual governo brasileiro, presidido por Fernando
Henrique Cardoso, promova a reforma agrária. Sujeito político,
o MST mobiliza seus militantes para ocupar terras ociosas e fazendas improdutivas,
sobretudo de propriedade de grileiros aqueles que, através da
violência e de meios escusos, apropriaram-se de terras pertencentes ao
poder público ou falsificaram títulos de posse, como ocorre com
mais freqüência na região amazônica.
Pesquisa encomendada, em março/97, pela Confederação Nacional
da Indústria, constatou que 85% dos pesquisados apoiavam as ocupações
de terra, desde que sem violência e mortes; 94% consideravam justa a luta
do MST pela reforma agrária; e 77% encaravam o MST como um movimento
legítimo. O dado mais expressivo representou um desafio para o governo
Cardoso: 88% disseram que o poder público deveria confiscar as terras
improdutivas e distribuí-las aos sem terra.
Quando um frade defende a reforma agrária, há quem pergunte:
por que a Igreja não começa por suas terras? A resposta é
simples: porque já faz isso há tempos e, segundo o governo federal,
restam-lhe 179.399 hectares retalhados por todo o país, o que equivale
a 0,05% dos latifúndios brasileiros, que somam 362.000.818 ha. E tomara
que esse restante passe logo às mãos dos sem-terra. Detalhe: os
20 maiores proprietários rurais detêm, juntos, a mesma área
de terra de 3,3 milhões de pequenos produtores familiares!
Por culpa da mídia, que quase nunca mostra o outro lado da moeda, muitos
ignoram que o MST se encontra organizado em 21 estados, onde já assentou,
graças às ocupações de áreas ociosas, cerca
de 138 mil famílias, hoje com renda média de 3,7 salários
mínimos mensais (dados da FAO). O salário mínimo brasileiro
equivale, hoje, a US$ 71. Suficiente para duas pessoas jantarem num dos melhores
restaurantes de S. Paulo, desde que o vinho seja dos mais baratos. No entanto,
19% dos brasileiros vivem com renda mensal inferior a 1/2 salário mínimo.
Não fosse o MST, milhões de sem-terra estariam agora favelizados,
engrossando o contingente de excluídos e marginais, aumentando a violência
nas cidades e agravando os índices de desemprego, que hoje afeta a vida
de 7% dos 60 milhões de trabalhadores brasileiros.
Conquistas do MST
De que vale ocupar terras se não há crédito, assistência
técnica e infra-estrutura? É o que indagam muitos que têm
mais olhos para a suposta incapacidade dos lavradores que para as longas extensões
de terras ociosas dos latifundiários.
O MST criou, em 1992, o Sistema Cooperativista dos Assentados (SCA), congregado
na Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do
Brasil (Concrab). Esta entidade reúne 45 cooperativas de produção
agropecuária, 10 cooperativas regionais de comercialização,
dezenas de associações e cooperativas centrais em oito estados.
O que faz a Concrab? Produz cartilhas sobre questões contábeis,
previdenciárias e trabalhistas, e promove cursos de capacitação
técnica, entre os quais se destacam os Laboratórios Organizacionais
do Campo e os cursos de Formação Integrada na Produção.
Para aprimorar a capacitação técnica, a Concrab mantém,
em Veranópolis, RS, o Instituto Técnico de Capacitação
e Pesquisa da Reforma Agrária (Iterra), equivalente ao segundo grau em
administração cooperativista.
Nos últimos anos, a Concrab canalizou mais de R$ 300 milhões
para os assentamentos, graças ao Programa Especial de Crédito
para a Reforma Agrária (Procera) e convênios firmados com os ministérios
do Trabalho (Secretaria de Formação Profissional) e Agricultura
(Departamento Nacional de Cooperativismo).
Quem só crê ao ver, deveria visitar assentamentos altamente produtivos,
como o de Santa Maria do Oeste, PR, que produz 3.500 kg/hora de erva-mate verde;
o de São Mateus, ES, com capacidade para beneficiar 10 mil sacas de café
no período da safra; o de Sarandi, RS, que resfria 13 mil litros de leite
por dia.
Vale a pena conferir ainda as sete casas de farinha, em Itarema, CE; a fábrica
de queijo de Monsenhor Tabosa, CE; e a indústria de processamento de
pêssego, em Piratini, RS. Em Dionísio Cerqueira, SC, há
uma fábrica de jeans que produz 1.000 calças/mês e comprova
que os assentamentos são capazes de gerar empregos aos jovens desmotivados
para o trabalho na terra.
A maior produtora de sementes olerícolas da América Latina é
a Cooperal, em Bagé, RS, vinculada à Concrab. Os assentamentos
gaúchos de Hulha Negra e Bagé são responsáveis por
40% da produção nacional de sementes de hortaliças.
Em suma, o MST ocupa para trabalhar e produzir. O latifúndio acumula
para especular. Errado não é o MST. É a lei que defende
o que é improdutivo e pune quem quer terra para plantar. Para o Evangelho,
porém, "o sábado foi feito para o homem e não o homem
para o sábado" (Marcos 2, 27). A propriedade, sobretudo ociosa e
supérflua, não pode estar acima do direito humano à vida.
O MST já mereceu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos Vladimir
Herzog; Medalha Chico Mendes por sua luta contra a violência no campo;
Prêmio Nobel Alternativo, do parlamento sueco (1991); Menção
de Honra do Prêmio Rei Balduíno, da Bélgica (1994); e o
Prêmio Unicef-Itaú (1995), por seu trabalho de educação
com a infância, de cuja cerimônia de entrega participou o ministro
Paulo Renato, da Educação.
Reforma agrária uma luta de todos!
O povo brasileiro vive num país de 8.500.000 km2. Boa parte das terras
é de latifúndios improdutivos. Grandes empresas derrubam florestas,
como a Amazônica, para espalhar o gado ou contrabandear a madeira; derramam
mercúrio em nossos rios para extrair minérios preciosos; invadem
as terras de indígenas e posseiros, semeando morte e violência;
enquanto homens e mulheres são expulsos da zona rural, condenados a engrossar
o contingente de miseráveis que alargam, em torno das cidades, o cinturão
de favelas.
Querem terras e recebem tiros. Querem semear e são obrigados a abrir
covas. Querem produzir frutos e esculpem cruzes. Querem ficar no campo e são
enxotados para a cidade. Querem empunhar enxadas e são manietados com
algemas. Querem colher alimentos e juntam tristezas. Querem assentar-se em terras
improdutivas e o governo envia a polícia para obrigá-los a ficar
do outro lado da cerca, como se a propriedade estéril tivesse mais valor
que a vida humana.
O Brasil só conheceu, em 500 anos de história, desde a colonização
portuguesa, apenas uma reforma agrária, a que retalhou o país
em Capitanias Hereditárias, implantando o modelo do latifúndio.
No século 19, aos negros libertos da escravidão foi negado o acesso
à terra e, ainda hoje, eles são duplamente discriminados, por
serem negros e por serem pobres. Vale dizer que o Brasil é a segunda
maior nação negra do mundo, depois na Nigéria, pois abriga
uma população negra superior a 50 milhões.
Profetizou o poeta que "o sertão vai virar mar, o mar vai virar
sertão". Se não chega, urgente, a reforma agrária,
o sertão prosseguirá virando um mar de desamparados no asfalto
das cidades, agravando a violência urbana. Hoje, quase 80% da população
brasileira vivem em cidades. Não haverá cidadania, nem fim para
a escalada de violência que assola os grandes centros urbanos enquanto
não houver reforma agrária.
Se a migração continuar alta, crescerá o desemprego urbano,
uma vez que as áreas de expansão das fronteiras agrícolas
não são mais suficientes para atrair as famílias expulsas
de suas terras pela mecanização, pela construção
de barragens hidrelétricas e pela concentração de terras.
Outrora, uma família expulsa de sua terra no Paraná ia para Rondônia
ou para a Transamazônica. Isso acabou, o Brasil está inteiramente
loteado. Quem perde a terra não tem para onde ir, nem pode encontrar
outras terras. Acaba na beira da estrada ou na favela.
O Brasil tem solução. Se a terra for repartida, as favelas serão
reduzidas. Se houver mais escolas, não será preciso construir
mais cadeias. Se os agricultores tiverem justo acesso a insumos e implementos
agrícolas, não ficarão em mãos de atravessadores
que pagam valores irrisórios a quem planta e cobram preços abusivos
de quem consome. Se houver canais diretos entre produtores e consumidores, a
produção deixará de ficar a mercê da ganância
dos supermercados e de grandes atacadistas.
A desapropriação é o principal recurso a ser utilizado
na redistribuição das terras agrícolas. Em princípio,
deveriam ser desapropriadas propriedades improdutivas com área superior
a 500 hectares, situadas nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste; no Centro-Oeste,
propriedades improdutivas com área superior a 1.000 hectares; e na região
Norte, propriedades improdutivas com área superior a 1.500 hectares.
Falta ao governo vontade política também na questão fundiária.
Se ele quisesse, as terras para assentamentos viriam: a) das desapropriações
de áreas aproveitáveis que não estão sendo exploradas,
sobretudo terras ociosas nas áreas de conflitos e de ocupações,
como prevê a Lei 8.629/93; b) da revisão de negociações
irregulares com terras do governo, conforme determina o artigo 51 da Constituição;
c) da negociação das terras dos usineiros em troca da quitação
de suas dívidas; d) das terras das empresas estatais; e) das penhoras
dos grandes proprietários que estão devendo aos bancos oficiais.
O artigo 51 da Constituição brasileira de 1988 estabelece que
devem ser revistas as doações, vendas e concessões de terras
públicas realizadas entre 1º de fevereiro de 1962 e 31 de dezembro
de 1987. Naquele período, o Senado Federal aprovou 51 resoluções,
que transferiram mais de 10 milhões de hectares para apenas 45 empresas
em 12 Estados. Essa área permitiria o assentamento de mais de 300.000
famílias! Tudo isso deve ser rigorosamente investigado, como determina
a Constituição, visando dispor de terras para os assentamentos.
Também devem ser apontadas as terras públicas federais nas regiões
de fronteira do Brasil, recuperando para a reforma agrária as terras
griladas.
Deve ser garantido prazo mínimo de 5 anos para os contratos de arrendamento,
parceria e comodato, bem como o direito de quem trabalha a terra renovar o contrato
por mais um período de 5 anos. A área somente poderá ser
retomada para uso do proprietário, na exploração direta
da terra. Quanto maior for o prazo do arrendamento, menos impostos pagará
o proprietário da terra. Quanto maior for o aluguel da terra, mais impostos
pagará o proprietário.
É preciso pôr fim à "amenidade fiscal" com que
o latifúndio tem sido tratado e adotar o valor real da terra nua como
base para a cobrança de impostos; utilizar alíquotas reais fortemente
progressivas para terras abandonadas, e regressivas para áreas racionalmente
cultivadas; utilizar a renda presumida como critério de lançamento
do imposto de renda de imóveis rurais não cultivados. A alíquota
final do ITR (Imposto Territorial Rural) deve levar em conta, para efeito de
progressividade, a área total dos imóveis de um mesmo proprietário.
A reforma agrária é a solução para o Brasil. E
não depende só da luta dos agricultores. Depende de todos os brasileiros.
É uma luta de todo o nosso povo - pessoas, classes sociais, empresas,
movimentos populares e sindicais, Igrejas e religiões, funcionários
públicos e partidos políticos.
"Sem reforma agrária, no Brasil não haverá democracia"
afirmou o papa João Paulo II em 1981, ao receber o presidente José
Sarney, em Roma.
Igreja, sementeira de movimentos sociais
A Igreja católica do Brasil está na origem do MST e dos movimentos
sociais que atuam hoje em nosso país. Para a maioria dos brasileiros,
a religiosidade cristã constitui o substrato de sua mundividência,
de seu modo de encarar a vida, o mundo e a história. Em outras palavras,
a ideologia do nosso povo se tece em categorias religiosas. Nunca conhecemos
o "desencantamento do mundo" de que falava Max Weber ao analisar a
modernidade européia.
Após a Segunda Guerra Mundial, o catolicismo social, sobretudo de inspiração
francesa, chegou ao Brasil, estimulando os movimentos de Ação
Católica. O profetismo de dom Helder Câmara teve papel decisivo
para que a Igreja, em nosso país, se aproximasse progressivamente dos
pobres. No inicio dos anos 60 surgiram as Comunidades Eclesiais de Base, núcleos
populares de nutrição da fé e mobilização
por direitos sociais. Chegaram a ser cerca de 100 mil em meados dos anos 80,
congregando mais de 5 milhões de pessoas.
Regidas pelo método Ver/Julgar/Agir, as Comunidades Eclesiais de base,
ao articularem fé e direitos sociais, produziram a matriz que serviu
de pedra-angular à Teologia da Libertação. Portanto, a
Teologia da Libertação é ato segundo. Ato primeiro é
a prática dos pobres em busca de superar o estado de opressão
em que vivem.
Em 1964, o Brasil caiu em mãos de uma ditadura militar. Embora a Igreja
católica tenha saudado o novo regime que, a seu ver, "livrara o
país do perigo comunista", logo a defesa dos direitos dos pobres
deu inicio a uma escalada de atritos entre governo e Igreja. Bispos, padres,
religiosas e leigos foram perseguidos, torturados, presos, exilados e/ou assassinados.
Eu mesmo passei quatro anos nos cárceres da ditadura. Essa "bem-aventurança
da perseguição" resultou numa maior proximidade entre os
movimentos pastorais da Igreja católica e os movimentos sociais.
Nos anos 70, as Comunidades Eclesiais de Base tornaram-se sementeiras de movimentos
sociais, animando a organização de mulheres, jovens, favelados,
desempregados, sem-terra e sem-teto. A Comissão Pastoral da Terra fez
os agricultores, organizados na luta por seus direitos, reconhecerem que não
bastava reivindicar reforma agrária. Era preciso começar a realizá-la.
Sobretudo, era preciso exigir a mudança do modelo econômico neoliberal,
dependente e excludente, que o FMI impõe ao nosso país. Surgiu,
pois, o MST, ao lado de tantos outros movimentos, como a CUT (Central Única
dos Trabalhadores) e a CMP (Central de Movimentos Populares).
A Igreja católica não pretende monitorar os movimentos sociais,
nem muito menos confessionalizá-los. Contribui para que se organizem
e sejam autônomos, laicos, mantendo com as pastorais sociais relações
de parceria em projetos de interesse comum, como o resgate da ética na
política, e em momentos cruciais da conjuntura nacional, como a convocação
do Plebiscito da Dívida Externa, em 2000. Dão-se as mãos
também em torno da agenda social da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB), como são os casos da Campanha da Fraternidade, na Quaresma,
que todos os anos adota um tema social; o Grito dos Excluídos, a 7 de
setembro, data de independência do Brasil; e a defesa dos direitos humanos.
A Igreja católica no Brasil não quer ser uma espécie de
partido político confessionalizado, nem pretende substituir a ação
do Estado. Antes, quer ser fiel ao Evangelho de Jesus, que veio "para que
todos tenham vida e vida em plenitude" (João 10, 10). A vida é
o dom maior de Deus. Num continente e num país sob o peso de estruturas
de morte, lutar pela vida é estar ao lado dos que são involuntária
e injustamente privados de acesso aos bens materiais capazes de assegurar uma
existência livre e feliz.
Para a fé cristã, os movimentos sociais são as "ferramentas"
com as quais se constrói, na história humana, o Reino de Deus.
Sem a mediação desses movimentos, a promessa do Reino torna-se
uma utopia, e a desigualdade social um castigo perene a tantos que, na América
Latina, nasceram sem receber da loteria biológica o prêmio de uma
vida digna.
1 Frei Betto, frade dominicano e escritor, é figura de proa nas comunidades
eclesiais de base que anteciparam a Teologia da Libertação. Militante
contra a ditadura militar, esteve muitos anos preso Assessor de diversos movimentos
sociais brasileiros dentre os quais a Pastoral Operária e a Central de
Movimentos Populares. Consultor do MST, atuando na formação de
militantes. Tem 45 livros publicados, dentre os quais O que é comunidade
eclesial de base (várias edições); Fidel e a religião
(1.300.00 exemplares vendidos só em Cuba); Das catacumbas , cartas da
prisão, escritas quando ele estava encarcerado pela ditadura militar
(1969-1973), traduzido em 9 idiomas; em parceria com Emir Sader, escreveu Controversões
civilização e barbárie na virada do século
(Boitempo).
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