Introdução
O modelo de desenvolvimento agropecuário implantado no Brasil, desde
a década de 1960, intensificou a concentração fundiária,
a expropriação e a expulsão de milhares de famílias
do campo. Assim, no cenário das duas últimas décadas, a
ocupação de latifúndios tem sido a principal ação
das famílias sem-terra e uma importante forma de acesso à terra,
pois elas impõem ao governo a desapropriação do latifúndio
e a efetivação de uma política de assentamentos rurais.
Enquanto forma de intervenção dos trabalhadores no processo político
e econômico de expropriação, as ocupações
fazem acontecer uma reforma agrária que o governo chegou a elaborar mas
não foi capaz de implementar, com o Estatuto da Terra e o Plano Nacional
de Reforma Agrária. A ocupação é, então,
parte de um movimento de resistência, na defesa dos interesses dos trabalhadores,
visando a produção e reprodução do trabalho familiar,
a cooperação, a criação de políticas agrícolas
voltadas para o desenvolvimento da agricultura camponesa e a geração
de políticas públicas destinadas aos direitos básicos da
cidadania. É através da ocupação que os "sem-terra"
espacializam a luta e territorializam o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra MST. Trata-se de um processo sócio-espacial e político
complexo, desenvolvido como forma de resistência do campesinato, embasado
sobre um conhecimento construído nas experiências de luta popular
contra o poder hegemônico do capital.
A ocupação, como forma de luta e acesso à terra, é
um processo contínuo na história do campesinato brasileiro, desde
o princípio de sua formação, como em seu processo de criação
e recriação. Nas últimas quatro décadas, os posseiros
e os sem-terra são os principais sujeitos dessa luta. Os posseiros
camponeses que, possuindo a terra, não são proprietário
dela, o que requer a posse e o domínio, por meio de uma certidão
de propriedade conhecida no Brasil como escritura ocupam terras, predominantemente,
nas faixas das frentes de expansão, em áreas de fronteira. Com
o avanço da frente pioneira ocorrem os processos de expropriação
desses camponeses, desenvolvidos principalmente pela grilagem de terra, por
latifundiários e empresários (grileiro é o indivíduo
que, através da violência e de meios escusos, apropria-se de terras
pertencentes ao poder público ou falsifica títulos de posse).
Os sem-terra ocupam terras, predominantemente, em regiões onde o capital
já se territorializou. Ocupam latifúndios propriedades
terras de negócio e exploração terras devolutas
e/ou griladas. As lutas por frações do território
os assentamentos representam um processo de territorialização
na conquista da terra de trabalho contra a terra de negócio e de exploração.
Essa diferença é fundamental, porque o grileiro, o latifundiário,
o empresário chegam onde o posseiro está. Os sem-terra estão
ou chegam onde o grileiro, o latifundiário, o empresário estão.
Desde meados da década de 1980, quando o MST se territorializou pelo
Brasil afora, os trabalhadores sem-terra, junto com os posseiros, os pequenos
proprietários, meeiros, rendeiros e parceiros intensificaram o
processo de formação do campesinato brasileiro.
Nesse cenário, a ocupação de latifúndios improdutivos
representa uma forma de ressocialização dos trabalhadores sem-terra,
processo importante de recriação do campesinato.
Criminalizar as ocupações é se esquivar do problema social,
político e econômico que elas representam. É condenar famílias
sem-terra que lutam pela recriação de sua existência como
trabalhadoras. É aceitar os interesses dos latifundiários e o
processo de intensificação da concentração da terra.
É preciso compreender que a ocupação é uma ação
decorrente de necessidades e expectativas, que inauguram questões, criam
fatos e descortinam situações. Evidente que esse conjunto de vetores
tem o poder de modificar a realidade, aumentando o fluxo das relações
sociais. São trabalhadores desafiando o Estado ue sempre representou
os interesses da burguesia agrária e dos capitalistas em geral. Por isso
mesmo, o Estado só responde sob intensa pressão dos trabalhadores,
apresentando políticas para atenuar os processos de exploraração
e da expropriação.
O aumento das ocupações de terra no Brasil tem causado um impacto
político de tal monta que os sem-terra são, hoje, os principais
interlocutores no enfrentamento com o Estado, e protagonistas da luta pela terra
e pela reforma agrária. São trabalhadores de origem rural ou urbana,
que estão lutando pela terra em todas as grandes regiões do país.
Essa realidade exige ensaios teóricos que contribuam para a compreensão
do fenômeno. Nosso objetivo, neste trabalho, é analisar essa extraordinária
forma de luta popular: o trabalho de base na organização de uma
ocupação; os processos, tipos e formas de ocupação;
os acampamentos enquanto espaços de luta, resistência e de transformação
da realidade; o significado da ocupação para a atual política
de assentamentos rurais e as ações do governo federal na tentativa
de impedir a territorialização da luta pela terra, desenvolvida
pelo MST e por outros movimentos sociais. No desenvolvimento do texto, faço
uma construção analítica dos processos de (re)criação
do campesinato a partir dessas formas de luta pela terra e resistência
contra a exploração e a exclusão, apresentando dados sobre
a origem dos assentamentos na intensificada luta pela terra em alguns Estados
brasileiros.
Ao apresentar a ocupação como forma de acesso à terra,
compreendo-a como uma ação de resistência inerente à
formação camponesa no interior do contraditório processo
de desenvolvimento do capitalismo, porque
o capital não expande de forma absoluta o trabalho assalariado, sua
relação de trabalho típica, por todo canto e lugar, destruindo
de forma total e absoluta o trabalho familiar camponês. Ao contrário,
ele, o capital, o cria e recria para que sua produção seja possível,
e com ela possa haver também a criação de novos capitalistas.
(Oliveira, 1991, p. 20).
Nessa realidade em que se desenvolvem a criação e a recriação,
acontece a exclusão no processo de diferenciação do campesinato.
Esse processo não leva necessariamente à proletarização
ou à transformação do camponês em capitalista, causando
a denominada desintegração do campesinato (Lênin, 1985,
p. 35 e Kautsky, 1986, p. 149). Leva também à recriação
do campesinato por diferentes formas. Uma é pela sujeição
da renda da terra ao capital, que acontece ante à "subordinação
da produção camponesa, pelo capital, que sujeita e expropria a
renda da terra. e, mais que isso, expropria praticamente todo excedente produzido,
reduzindo o rendimento do camponês ao mínimo necessário
à sua reprodução física." (Oliveira, 1991,
p. 11). Desse modo, o movimento de formação do campesinato acontece
simultaneamente pela exclusão e pela geração das condições
de realização do trabalho familiar na criação, destruição
e recriação das relações sociais, como a propriedade
camponesa da terra, a posse, o arrendamento, a meação e a parceria.
A luta pela terra é uma luta constante contra o capital. A ocupação
e a conquista da terra constituem uma forma de materialização
da luta de classes. Em sua reprodução ampliada, o capital não
pode assalariar a todos, excluindo sempre grande parte dos trabalhadores. Da
mesma forma, na realidade brasileira, o capital, em seu processo contraditório
de reprodução das relações não-capitalistas,
não recria na mesma intensidade com que exclui. Assim, por meio da ocupação,
eles se reinserem na produção capitalista das relações
não-capitalistas de produção (Martins, 1981). Os expropriados
e explorados pelo desenvolvimento desigual do modo capitalista de produção
utilizam-se da ocupação da terra também como forma de reproduzir
o trabalho familiar. Na resistência contra o processo de exclusão,
os trabalhadores criam uma forma política para se ressocializarem, lutando
pela terra e contra o assalariamento. É a luta contra a expropriação
e contra a exploração, contra a exclusão causada pelos
capitalistas e/ou pelos proprietários de terra.
A territorialização do capital significa a desterritorialização
do campesinato e vice-versa. Evidente que esses processos não são
lineares, tampouco separados. Eles contêm a contradição
porque na territorialização de um está contida a produção
e a reprodução de outro. No interior do processo de territorialização
do capital há a criação, destruição e recriação
do trabalho familiar. Da territorialização do campesinato produzem-se
o trabalho assalariado e o capitalista. Os avanços e recuos desses processos
pelo território são determinados por um conjunto de fatores políticos
e econômicos. Destaco alguns que foram condicionantes para a formação
da atual questão agrária.
1 O trabalho de base, a espacialização e a negociação
A organização de uma ocupação decorre da necessidade
de sobrevivência. Acontece pela consciência construída na
realidade em que se vive. É, portanto, um aprendizado num processo histórico
de construção das experiências de resistência. Quando
um grupo de famílias começa a se organizar com o objetivo de ocupar
terra, desenvolve um conjunto de procedimentos que toma forma, definindo uma
metodologia de luta popular. Essa experiência tem a sua lógica
construída na praxis. Essa lógica tem como componentes constitutivos
a indignação e a revolta, a necessidade e o interesse, a consciência
e a identidade, a experiência e a resistência, o movimento e a superação,
a concepção de terra de trabalho contra a concepção
de terra de negócio e de exploração.
Na formação do MST, os sem-terra criaram distintas metodologias
de luta. São procedimentos de resistência desenvolvidos na trajetória
da luta. Essas ações são diferenciadas em todo o Brasil.
Na espacialização da luta pela terra, os espaços de socialização
política podem acontecer em momentos distintos, com maior ou menor freqüência.
Os acampamentos apresentam conformações variadas, conforme sejam
permanentes ou destinados a um grupo de famílias. Também são
distintas as formas de pressão e negociação, de acordo
com a conjuntura política. Essas práticas são resultados
do conhecimento de experiências, das trocas e da reflexão sobre
elas, bem como das situações em que se encontram as frações
dos territórios a serem ocupadas, em diferentes regiões brasileiras.
Os elementos que compõem as metodologias são a formação,
a organização, as táticas de luta e negociação
com o Estado e os latifundiários, tendo como ponto de partida o trabalho
de base.
As Comunidades Eclesiais de Base CEBs, os sindicatos de trabalhadores
rurais, as escolas e as próprias moradias são espaços sociais
onde se realizam as reuniões de trabalho. Esses trabalhos de base nascem
sempre da própria necessidade das comunidades e podem resultar da espacialização
ou da espacialidade da luta pela terra.
A espacialização é um processo do movimento concreto da
ação em sua reprodução no espaço e no território.
Os trabalhos de base podem ser organizados por pessoas que vieram de outro lugar,
onde construíram as suas experiências. Por exemplo: um ou mais
sem-terra de um estado se deslocam para outras regiões do país
para organizar famílias sem-terra. E, dessa forma, vão criando
o Movimento na sua territorialização.
A espacialidade é um processo contínuo de uma ação
na realidade, é o dimensionamento do significado de uma ação.
As pessoas do próprio lugar iniciam o trabalho de base porque ouviram
falar, viram ou leram sobre ocupações de terra, ou seja, tomaram
conhecimento delas por diferentes meios de expressão como a fala, a escrita
ou as notícias de jornal, rádio e televisão. E assim iniciam
a luta pela terra construindo suas próprias experiências.
Portanto, os trabalhos de base são realizados em diferentes lugares
e em distintas condições. Acontecem por meio da construção
do espaço de socialização política. Esse espaço
possui três dimensões: espaço comunicativo, espaço
interativo e espaço de luta e resistência.
O espaço comunicativo é construído desde as primeiras
reuniões. É o momento da apresentação, do conhecer-se
e definir objetivos, de entender porque estão naquele lugar, suas necessidades
e interesses, elaborar os motivos de sua revolta e indignação,
atitudes e sentimentos que vão determinar o tempo e a forma de ocupar.
É o início de uma experiência de transformação
de suas realidades.
O espaço interativo é um contínuo processo de aprendizado
que, dependendo da metodologia e do desenvolvimento das práticas, pode
acontecer antes, durante ou depois da ocupação da terra, construindo
uma forma de organização social. O sentido da interação
está nas trocas de experiências, no conhecimento das trajetórias
de vida, na conscientização da condição de expropriados
e explorados, na construção da identidade sem-terra. O conteúdo
das reuniões dos trabalhos de base é a recuperação
das histórias de vida associadas ao desenvolvimento da questão
agrária. Assim, a vida é experimentada como produtora de interações.
Fazem suas análises de conjuntura, das relações de forças
políticas, da formação de articulações e
alianças para o apoio político e econômico. Desenvolvem
as condições subjetivas por meio do interesse e da vontade, reconhecendo
seus direitos e participando da construção de seus destinos. Defrontam-se
com as condições objetivas da luta contra os latifundiários
e seus jagunços, do enfrentamento com a polícia, com o Estado.
Esse é um processo de formação política, gerador
da militância que fortalece a organização social. Todos
esses processos, práticas e procedimentos colocam as pessoas em movimento,
na construção da consciência de seus direitos, em busca
da superação da condição de expropriadas e exploradas.
O primeiro passo é deliberar a respeito de sua participação
na ocupação da terra. Essa tomada de decisão tem como pressuposto
que somente com essa ação poderão encontrar solução
para o estado de miséria em que vivem. Devem decidir também sobre
qual terra ocupar, onde ocupar. Os latifúndios são muitos, não
há dificuldade em encontrá-los. Há várias fontes
de informações sobre a localização das terras que
não cumprem sua função social. Desde o conhecimento que
as comunidades possuem dos inúmeros latifúndios, pelos quais muitas
vezes estão cercadas, até informações conseguidas
nas diversas instituições governamentais ou não-governamentais
que trabalham com a questão agrária.
Aí se definem os contornos do espaço de luta e resistência.
Definida a terra, falta somente a decisão de quando ocupar. É
com a ocupação efetiva do latifúndio que os trabalhadores
sem-terra vêm a público e dimensionam o espaço de socialização
política, intervindo na realidade, acampando nas margens das rodovias,
organizando a ocupação, construindo, enfim, o seu espaço
de luta e resistência.
Participar de uma ocupação não é uma decisão
tão simples; afinal, mais do que experiência, significa transformar
a própria vida. Por essa razão, muitas vezes, para algumas famílias,
existe a indecisão e o medo. Para superar o medo é preciso confiança
nas pessoas que compõem e coordenam o Movimento. Assim, uma liderança
tem a responsabilidade de, ao defender a ocupação, apresentar
idéias e referências que permitam a superação das
dúvidas, desenvolver argumentos, nas reuniões dos trabalhos de
base, para o dimensionamento do espaço de socialização
política. Nesse contexto, os coordenadores, os padres, os sindicalistas
tornam-se importantes referências para os trabalhadores indecisos. Outra
forma de convencimento é a visita aos acampamentos e assentamentos já
existentes, quando os assentados dão testemunhos de suas lutas. Todavia,
muitos ficam na espreita e só vão para o acampamento depois de
efetivada a ocupação. Essas atitudes acabam gerando um debate
interno, quando muitas famílias reclamam pelo fato de se sentirem "bois-de-piranha".
Há também os que são chamados de "andorinhas",
que são os que aparecem vez ou outra no acampamento. Esses são
a expressão da indecisão ou do oportunismo. Há, também,
aqueles que participam de vários grupos de família, assistem à
realização de várias ocupações, até
se decidirem pela adesão.
As reuniões realizadas nos trabalhos de base são espaços
geradores de sujeitos construindo suas próprias existências. Dependendo
da conjuntura, essas reuniões podem durar um, três, seis meses
ou até anos. Podem envolver um município, vários municípios
de uma microrregião, vários municípios de várias
microrregiões, ou até mais de um estado em áreas de fronteira.
Nos anos da ditadura, essas reuniões precisavam ser feitas com bastante
sigilo por causa da repressão. Com a territorialização
da luta e o aumento da participação das famílias, essas
reuniões se multiplicaram, deixando de ser reuniões com dezenas
para contar com centenas de famílias. Esse crescimento também
trouxe problemas. Policiais e jagunços passaram a se infiltrar nas reuniões
para espionar o desenvolvimento e a erupção da luta. Esses espiões
muitas vezes não são descobertos e a ocupação acaba
sendo frustrada. Para evitar esse fato, as lideranças passaram a informar
o dia e o lugar das ocupações apenas horas antes da ação.
Por outro lado, o crescimento das ocupações é decorrente
não só da organização dos sem-terra, mas também
do aumento das formas de apoio. Cada vez mais, as famílias que participam
dessas reuniões recebem apoio das comunidades urbanas e dos assentados,
bem como de prefeituras que cedem transporte para participarem de encontros
e, até mesmo, de ocupações.
Durante esse processo, os coordenadores de grupos procuram negociar com o Estado
o assentamento das famílias. Quase sempre, o que conseguem obter são
promessas e compromissos que não se cumprem. No conhecimento das experiências,
aprenderam que devem construir as condições necessárias
para conquistar a terra, participando da formação de núcleos,
setores e coordenações compostas por grupos de pessoas responsáveis
pelas diversas necessidades das famílias, a começar pelos problemas
de alimentação, saúde e escola para crianças, jovens
e adultos. Criam comissões de negociação para acompanhar
o encaminhamento das soluções junto às instituições
e informar a sociedade sobre seus atos; montam núcleos de coordenação
para manter o acampamento informado e organizado. No MST, esses trabalhos são
realizados por diversos setores, tendo o setor de Frente de Massa como responsável
pelo trabalho de base e pelo desenvolvimento das ações.
Os trabalhadores sem-terra são os principais sujeitos desse processo.
Desde o princípio da luta recebem o apoio de diferentes instituições,
por meio de alianças que formam uma articulação política.
As instituições envolvidas defendem a ocupação como
forma de acesso à terra. Durante os vinte anos de sua organização,
em diferentes conjunturas, o MST recebeu ou tem recebido apoio da Comissão
Pastoral da Terra CPT, dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais, da Central
Única dos Trabalhadores CUT, do Partido dos Trabalhadores
PT, de outros partidos políticos e de diversas organizações.
Todavia, a relação na articulação sempre gerou embates
políticos, por causa das diferentes concepções sobre as
atribuições que as partes das alianças devem ter no desenvolvimento
da luta pela terra. Algumas das questões desse embate são relativas
à autonomia dos trabalhadores. Muitas vezes, as organizações
tentaram interferir nas decisões dos trabalhadores, não distinguindo
as respectivas competências. Isso aconteceu, por exemplo, quando pretenderam
coordenar as lutas, tentando representar os trabalhadores, defendendo que o
MST devesse apenas apoiar os sem-terra, quando na verdade os sem-terra são
e fazem o Movimento.
O embate também acontece por causa das diferentes concepções
de luta. Estas são extremamente diferenciadas em todas as regiões
do país. Há concepções favoráveis a posturas
defensivas, outras que defendem posturas ofensivas na realização
das ocupações, compreendidas como diferentes formas de resistência
à ação das polícias e dos pistoleiros. As posturas
mais defensivas sustentam o não-enfrentamento, optando apenas pela negociação,
enquanto as ofensivas sustentam a negociação e o enfrentamento.
A superação do embate acontece pelo reconhecimento da autonomia
dos trabalhadores e das competências de cada instituição.
Na formação do MST, essa superação foi possível
depois de rompimentos e retomadas das relações, por meio das lições
construídas nas lutas. Para todas as organizações envolvidas
na luta, este foi sempre um processo de aprendizagem. De diferentes formas,
persistiu sempre a concepção de que ocupar é a solução.
Até meados dos anos 90, os sem-terra enfrentaram essa questão.
Depois de anos de embate, as instituições reconheceram as experiências
e a autonomia dos trabalhadores. Assim, esses camponeses sem-terra falam suas
próprias linguagens, conquistando o respeito e a admiração
de alguns e a aversão de outros. Foi a luta incessante pela autonomia
política que muito contribuiu para a espacialização e a
territorialização do MST pelo Brasil. Nesse sentido, o Movimento
dos Sem-Terra não é resultado da proposta política de um
partido, não é fruto de uma proposta da Igreja, nem do movimento
sindical. Embora tenha recebido apoio da conjugação dessas forças
políticas, o MST é uma realidade que surgiu da lógica desigual
do modo capitalista de produção. O Movimento é fruto dessa
realidade, e não das instituições.
2 Processos de ocupação: tipos e formas espacialização
e territorialização
Na análise dos tipos e formas de ocupações realizadas
pelos sem-terra, tomo como referência a abordagem analítica em
"Ocupações de terras por camponeses", de Eric Hobsbawm,
procuro refletir sobre a questão das ocupações. Nesse trabalho,
o autor, utilizando a expressão tipo, abordou o componente terra. Neste
ensaio utilizo outros componentes, como famílias e experiências.
Assim, os tipos de ocupação estão relacionados à
propriedade da terra (pública, capitalista, de organizações
não-governamentais); às formas de organização das
famílias e aos tipos de experiências que constroem. Trabalho, portanto,
com as expressões tipos e formas, procurando entender os processos de
desenvolvimento da ocupação de terra e aprofundar minhas reflexões
a respeito dos processos de espacialização e territorialização
da luta pela terra.
Hobsbawm destaca três tipos de ocupações: a) recuperación
ou terras de trabalho reconquistadas que estavam ocupadas há décadas
por camponeses, mas se encontram em litígio por causa da territorialização
do capital na expropriação das famílias camponesas; b)
terras devolutas, quando os camponeses ocupam terras pertencentes ao Estado,
em áreas de fronteira, griladas por latifundiários; e c) ocupação
de latifúndios. Nesse estudo, Hobsbawm preocupou-se, principalmente,
com as ocupações do primeiro tipo, que também têm
relevância no Brasil, especialmente na Amazônia, onde parte das
terras de posseiros foi apropriada e grilada pelos latifundiários e empresários.
Contudo, no nosso país predominam as ocupações de terras
devolutas e/ou públicas, e as ocupações de latifúndios,
que têm sido importantes formas de acesso à terra.
Com referência à forma de organização dos grupos
de famílias, há dois tipos: movimentos isolados e movimentos territorializados.
Esses significados têm como referência a organização
social e o espaço geográfico.
Compreendo como isolado o movimento que se organiza em uma base territorial
determinada. São aqueles que se organizam em um município ou um
pequeno conjunto de municípios, para efetivar uma ocupação.
Que tem o seu território de atuação definido por circunstâncias
inerentes aos movimentos. Ou seja, nascem em diferentes pontos do espaço
geográfico, em lutas de resistências. Brotam em terras de latifúndios
através da espacialidade da luta. Esses movimentos recebem apoios de
uma ou mais paróquias, por meio ou não das pastorais, de sindicatos,
de partidos, etc. Todavia, sua base territorial está limitada pela ação
do movimento. Sem a superação de sua circunstância, os movimentos
isolados se extinguem. A perspectiva da territorialização está
relacionada com sua forma de organização sociopolítica.
Quando esses movimentos são resultados de interesses imediatos da comunidade,
defendidos por lideranças personalistas, que criam relações
de dependência, a tendência é o esgotamento do movimento.
Superando essa condição, pode vir a ser um movimento territorializado,
organizando ações para além de sua base territorial de
origem, ou se vincular a uma organização territorializada. Foi
desse modo que os recentes movimentos sociais de luta pela terra se desenvolveram.
Os movimentos territorializados são construídos pelos trabalhadores
e suas estruturas podem ter duas formas: movimento social ou movimento sindical.
Esses movimentos recebem apoios de diferentes instituições, em
conjunto ou em separado, por meio de articulações e/ou alianças,
nas formas de apoio político ou econômico. O movimento social pode
receber apoio e/ou estar vinculado a alguma pastoral da Igreja Católica
(Comissão Pastoral da Terra ou Pastoral Rural). Da mesma forma que o
movimento sindical, pode ser apoiado também por centrais sindicais, partidos
políticos e organizações não-governamentais. Essas
são as instituições que têm apoiado a luta pela terra,
principalmente as ocupações. O movimento social territorializado
ou socioterritorial está organizado e atua em diferentes lugares ao mesmo
tempo, ação possibilitada por causa de sua forma de organização,
que permite espacializar a luta para conquistar novas frações
do território, multiplicando-se no processo de territorialização.
Um bom exemplo de movimento socioterritorial é o MST.
Quando os movimentos contemplam objetivos mais amplos, que não seja
apenas o de resolver o próprio problema, mas inserir-se no processo de
luta, e as lideranças promovem espaços de socialização
política, para a formação de novas lideranças e
experiências, a tendência é de desenvolvimento da forma de
organização, espacialização e territorialização.
Dessa forma, amiúde, trabalham não somente com o próprio
problema, mas carregam a dimensão da luta pela terra, organizando novos
grupos de famílias, inaugurando novos lugares, espacializando e territorializando
o movimento e a luta. Todo movimento socioterritorial nasce de um ou mais movimentos
sociais isolados. Na verdade, são processos interativos, de modo que
a espacialização cria a territorialização e é
reproduzida por esta.
Neste sentido, pode-se afirmar que os movimentos socioterritoriais possuem
uma dimensão política que supera os limites dos problemas do cotidiano
e das questões do lugar. Para que um movimento se territorialize é
necessária a compreensão da lógica da sociedade capitalista,
das suas desigualdades e contradições. A territorialização,
neste caso, significa ir além tanto no espaço, quanto no tempo,
sempre na perspectiva de construção de uma nova realidade.
As ocupações podem ser desenvolvidas por meio dos seguintes tipos
de experiências: espontâneas e isoladas, organizadas e isoladas,
organizadas e espacializadas. As experiências são sempre formas
de luta e resistência, porque inauguram um espaço, na luta pela
terra, que é o acampamento. A quantidade de famílias envolvidas
varia de pequenos a grandes grupos.
As ocupações isoladas e espontâneas acontecem, majoritariamente,
por pequenos grupos, numa ação singular de sobrevivência,
quando algumas famílias ocupam uma área sem configurar uma forma
de organização social. Entram na terra em grupos e então,
pela própria necessidade, passam a constituir um movimento social. O
caráter de espontaneidade está no fato de não haver uma
preocupação anterior em se construir uma forma de organização,
o que acaba por acontecer, ou não, no processo de ocupação.
Essas ocupações podem resultar em um movimento social isolado.
As ocupações isoladas e organizadas são realizadas por
movimentos sociais isolados de um ou mais municípios. A predominância
é de formação de pequenos grupos, mas também ocorrem
ocupações massivas. As famílias formam o movimento antes
de ocupar a terra. Organizam trabalhos de base, realizando várias reuniões
até a consumação do fato. As tendências desses movimentos
são: esgotar-se depois da conquista da terra ou transformar-se em movimentos
territorializados.
Esses dois tipos de ocupação citados anteriormente são
frutos da espacialidade e da territorialidade da luta pela terra. Diferem das
ocupações realizadas pelos movimentos socioterritoriais, que executam
ocupações organizadas e espacializadas. Estes são conhecimentos
resultantes de experiências trazidas de outros lugares. Estão contidos
em um projeto político mais amplo e podem fazer parte de uma agenda de
lutas. Como já dissemos, o significado de espacialização
tem como referência a participação de trabalhadores que
já viveram a experiência da ocupação em outros lugares
e regiões e, como militantes, espacializam essas experiências,
trabalhando com a organização de novas ocupações,
territorializando a luta e o movimento na conquista de novas frações
do território o assentamento a terra de trabalho. É
nesse processo que se formam, num refazendo constante ou, para usar uma expressão
de Thompson (1987), fazendo-se em movimentos sociais, construindo seus espaços
e seus tempos, transformando suas realidades.
Com o diagrama abaixo procuro ilustrar as idéias apresentadas nesta
análise.
A experiência da ocupação
no processo de territorialização é um aprendizado. É
da construção de conhecimentos nas realidades dos grupos de famílias
e das lutas de referência que aprendem a fazer as suas próprias lutas.
Lutas de referência são aquelas que lhes são relatadas ou
que conheceram. Os movimentos socioterritoriais, em seus processos de formação,
multiplicaram suas ações e passaram a fazer várias ocupações
num pequeno espaço de tempo ou ao mesmo tempo. E no "entretanto"
dos processos de negociação dessas ocupações para
implantação de assentamentos, fazem novas ocupações,
num contínuo de espacialização e territorialização.
Por essa razão, definimos esse "entretanto" como um importante
intervalo de tempo, quando, no "enquanto" de uma luta, começa
a nascer outra. Desse modo, é possível intensificar o número
de ocupações, mobilizando e organizando cada vez mais famílias.
Nesse sentido, a ocupação é um processo socioespacial, é
uma ação coletiva, é um investimento sociopolítico
dos trabalhadores na construção da consciência da resistência
no processo de exclusão. E dessa forma multiplicam-se as ocupações
e o número de famílias participantes.
O processo de territorialização fortaleceu os movimentos porque
possibilita a espacialização das experiências, que muito
contribui para o avanço da luta em outros estados e regiões. Experiências
espacializadas agilizam a organização porque os grupos de famílias
trabalham desde as experiências vividas e avaliadas. Nesse sentido, o
começo de uma luta tem como referências outras lutas e conquistas.
Assim, ao consumarem suas conquistas, territorializando-se, terão suas
lutas relatadas na espacialização do movimento. Dessa forma, vão
construindo suas histórias, suas existências.
No curso das experiências, os sem-terra passaram a combinar várias
formas de luta, que acontecem em separado ou simultaneamente com ocupações
de terra. São as marchas ou caminhadas, as ocupações de
prédios públicos e as manifestações em frente às
agências bancárias. Esses atos intensificam as lutas e aumentam
o poder de pressão dos trabalhadores nas negociações com
os diferentes órgãos do governo. Igualmente expõem suas
realidades, recebendo apoio e críticas da opinião pública
e de diversos setores da sociedade. As caminhadas e marchas são formas
de manifestação política produzidas na espacialização
e produtoras de espacialidades.
Pelo desenvolvimento dos procedimentos das práticas de luta, nos processos
de espacialização e territorialização, é
possível definir dois tipos de ocupação: ocupação
de uma área determinada e ocupação massiva. A principal
diferença desses tipos está no fato de que, no primeiro, o tamanho
da área é critério para mobilização e organização
das famílias. Dependendo do tamanho da área pode ser uma ocupação
de pequenos grupos ou até de numerosos grupos, massificando a luta. No
segundo, a mobilização e a organização têm
como critério assentar todas as famílias sem-terra, ocupando quantas
áreas forem necessárias.
No primeiro tipo a ocupação é realizada com o objetivo
de conquistar somente a área ocupada. Portanto, as famílias são
mobilizadas e se organizam para reivindicar a terra ocupada. Havendo famílias
remanescentes, iniciam uma nova luta para se conquistar uma outra área.
Cada ocupação resulta na conquista de um assentamento. Nesse caso,
a lógica da organização das famílias é mobilizar-se
conforme as áreas reivindicadas.
Essa lógica muda com as ocupações massivas. Aí
os sem-terra superam a condição de ficarem limitados ao tamanho
da área reivindicada. O sentido da ocupação deixa de ser
somente a conquista de uma determinada área e passa a ser o assentamento
de todas as famílias, de modo que uma ocupação pode resultar
em vários assentamentos. Essa forma de organização intensificou
a territorialização da luta. O critério principal para
assentar as famílias não é mais o limite territorial, mas
o tempo e as formas em que as famílias participam da luta. A ocupação
transforma-se numa luta contínua pela terra, num refazendo constante;
conforme as famílias vão sendo assentadas, novas famílias
unem-se às famílias em luta. Assim, conforme vão conquistando
frações do território, vão somando mais grupos de
famílias aos grupos remanescentes.
A ocupação de uma área determinada pode se transformar
em uma ocupação massiva, não só pela quantidade
de famílias que dela participam, mas por causa do desdobramento da luta.
Isso acontece quando, depois da conquista da terra reivindicada, passa-se a
ter conhecimento de um conjunto de áreas que podem ser conquistadas e
da perspectiva de se reunir diversos grupos de famílias em uma mesma
ocupação. Desse modo, é importante destacar que a massificação
não tem só o sentido de quantidade, mas também o de qualidade.
Este é determinado pelo dimensionamento do espaço de socialização
política, principalmente no fortalecimento do espaço interativo,
que acontece por meio da difusão de núcleos, setores e comissões,
de modo a fortalecer o movimento. Nesses espaços, as famílias
passam a trabalhar mais intensamente suas necessidades e perspectivas, como
alimentação, saúde, educação, negociação
etc.
Com essas práticas, os sem-terra reúnem-se em movimento. Superam
bases territoriais e fronteiras oficiais. Na organização da ocupação
massiva, agrupam famílias de vários municípios e de mais
de um estado, quando em áreas fronteiriças. Desse modo, rompem
com localismos e outros interesses que possam impedir o desenvolvimento da luta
pelos trabalhadores (1). Assim, os critérios de seleção
das famílias a serem assentadas não podem ficar restritos à
procedência das famílias. As pessoas que compõem as comissões
de seleção precisam considerar como critério, entre os
determinados pelo governo (2), a história da luta.
Na execução das ocupações, os sem-terra podem realizar
diferentes formas de estabelecimento na terra. Há experiências
em que ocupam uma faixa de terra e prosseguem com as negociações,
reivindicando a desapropriação da área. Há experiências
em que ocupam a terra toda, dividem em lotes e começam a trabalhar; noutras
demarcam uma única área e plantam coletivamente. Essas práticas
são resultado do desenvolvimento da organização dos sem-terra.
São formas de resistência que colocam em questão a terra
de trabalho contra a terra de exploração.
Os processos de espacialização e territorialização
diminuem e podem terminar quando as famílias sem-terra conquistam os
latifúndios de um ou mais municípios (3). Encerra-se assim o que
chamamos de ciclo das ocupações. Esse ciclo inicia-se com as primeiras
ocupações e dura o tempo em que ainda existir terra para ser ocupada.
Por mais que se tenha um planejamento, a espacialização da luta
por meio da ocupação da terra é sempre um devir. Possui
o sentido das possíveis transformações incessantes, quando
as conjunturas construídas dissolvem-se e/ou relacionam-se, formando
novas conjunturas, superando-se ou retrocedendo. Portanto, por mais que os sem-terra
tenham construído experiências diversas, a espacialização
de uma ocupação nunca é um fato completamente conhecido,
tampouco desconhecido.
3 Os acampamentos: espaços de lutas e resistência
Ser acampado é ser um sem-terra que tem por objetivo ser um assentado,
constituindo, assim, duas categorias com uma identidade em formação.
Os acampamentos são resultado de decisões tomadas a partir de
desejos e de interesses, objetivando a transformação da realidade,
configurando, assim, espaços e tempos de transição na luta
pela terra. Essas realidades em transformação são formas
de materialização da organização dos sem-terra e
trazem em si os principais elementos organizacionais do movimento. Sendo, predominantemente,
resultantes de ocupações e, portanto, espaços de resistência,
eles demarcam nos latifúndios os primeiros momentos do processo de territorialização
da luta.
Os acampamentos podem estar localizados dentro de um latifúndio ou nas
margens de uma estrada, conforme a conjuntura política e a correlação
de forças. Também podem ser as primeiras ações das
famílias ou podem ser a reprodução dessa ação
por diversas vezes. Há casos em que o acampamento é lugar de mobilização
para pressionar o governo na desapropriação de terras. Todavia,
em suas experiências, os sem-terra compreenderam que acampar, sem ocupar,
dificilmente leva à conquista da terra. A ocupação da terra
é um trunfo nas negociações. Muitos acampamentos ficaram
anos nas beiras das rodovias sem que os trabalhadores conseguissem ser assentados.
Somente com a ocupação obtiveram êxito na luta.
À primeira vista, os acampamentos parecem ser ajuntamentos desorganizados
de barracos. Todavia, possuem determinadas disposições conforme
a topografia do terreno e as condições de desenvolvimento da resistência
ao despejo e das perspectivas de enfrentamento com jagunços. Podem estar
localizados em fundos de vale ou nos espigões. Os arranjos dos acampamentos
são predominantemente circulares ou lineares. Nesses espaços existem
lugares onde, muitas vezes, os sem terra plantam suas hortas, onde estabelecem
a "escola" e "a farmácia", bem como o local das assembléias
Ao organizar um acampamento, os sem-terra criam diversas comissões ou
equipes, que dão forma à organização. Participam
famílias inteiras ou parte de seus membros, que criam as condições
básicas para a manutenção das suas necessidades: saúde,
educação, segurança, negociação, trabalho
etc. Dessa forma, os acampamentos, freqüentemente, têm escolas, ou
seja barracos de lona em que funcionam salas de aula, principalmente as quatro
primeiras séries do ensino fundamental; têm um barraco que funciona
como "farmácia" improvisada e, quando dentro do latifúndio,
plantam em mutirão para garantir parte dos alimentos de que necessitam;
quando na estrada, plantam entre a rodovia e a cerca; quando próximos
de assentamentos, os acampados trabalham nos lotes dos assentados, como diaristas
ou em diferentes formas de meação. Também vendem sua força
de trabalho como bóias-frias para usinas de álcool e açúcar
ou outras empresas capitalistas, ou para pecuaristas.
Na década de 1980, os acampamentos recebiam alimentos, roupas e remédios
das comunidades e de instituições de apoio à luta. Desde
o final dos anos 80 e o início da década de 1990, com o crescimento
do número de assentamentos, as próprias unidades assentadas também
passaram a contribuir com a luta de diversas formas. Muitos cedem caminhões
para a realização das ocupações, tratores para preparar
a terra e alimentos para a população acampada. Esse apoio é
mais significativo quando os assentados estão vinculados a uma cooperativa.
Essa é uma marca da organicidade do MST. Com o crescimento do apoio das
comunidades, das instituições, dos assentamentos e com a consolidação
do MST, os sem-terra conseguiram intensificar o número de ocupações
e desenvolver a resistência, de modo a realizar dezenas de ocupações
simultâneas.
Na segunda metade da década de 1990, em alguns estados, o MST começou
uma experiência que denominou de acampamento permanente ou acampamento
aberto. Esse acampamento é estabelecido em uma região onde existem
muitos latifúndios. É um espaço de luta e resistência
para onde as famílias de diversos municípios se dirigem e se organizam.
Desse acampamento permanente, os sem-terra partem para várias ocupações,
para onde podem se transferir ou, em caso de despejo, retornarem para o acampamento.
Conforme vão conquistando a terra, vão mobilizando e organizando
novas famílias que passam a compor o acampamento. Como afirmamos, o acampamento
acontece no processo de espacialização da luta, inaugurando a
territorialização. Ao organizarem a ocupação da
terra, os sem-terra promovem uma ação concreta de repercussão
imediata. Essa ação é política e se efetiva como
ato de resistência, como condição para negociação,
cujos desdobramentos estão condicionados à origem do fato. A ocupação
coloca como questão a propriedade capitalista da terra, no processo de
criação da propriedade familiar.
O acampamento é lugar de mobilização constante, é
também espaço interativo e espaço comunicativo. Essas três
dimensões do espaço de socialização política
desenvolvem-se no acampamento em diferentes situações. No início
do processo de formação do MST, na década de 1980, em diferentes
experiências de acampamentos, as famílias partiam para a ocupação
somente depois de meses de preparação nos trabalhos de base. Desse
modo, os sem-terra visitavam as comunidades, relatavam suas experiências,
provocavam o debate e desenvolviam intensamente o espaço de socialização
política em suas dimensões comunicativa e interativa. Esse procedimento
possibilita o estabelecimento do espaço de luta e resistência de
forma melhor organizada, pois as famílias são conhecedoras dos
tipos de enfrentamentos da luta. Durante seu processo de formação,
pela própria demanda da luta, o MST construiu outras experiências.
Assim, nos trabalhos de base não se desenvolveram as dimensões
interativas, o que só passou a acontecer no espaço de luta e resistência.
E ainda, quando há um acampamento permanente ou aberto, as famílias
podem iniciar-se na luta inaugurando o espaço comunicativo, desenvolvendo
o espaço interativo. É o caso de quando os sem-terra estão
lutando pela conquista de várias fazendas e as famílias vão
se somando ao acampamento, enquanto outras vão sendo assentadas.
No acampamento, os sem-terra fazem periodicamente análises da conjuntura
da luta. Essa leitura política é facilitada para os movimentos
socioterritoriais porque estão em contato permanente com suas secretarias,
de modo que podem fazer as análises a partir de referenciais políticos
amplos, como, por exemplo, as negociações que estão acontecendo
nas capitais dos estados e em Brasília. Assim, associam formas de luta
local com as lutas nas capitais. Ocupam a terra diversas vezes como forma de
pressão para abrir a negociação, fazem marchas até
as cidades, ocupam prédios públicos, fazem manifestações
de protestos, reuniões etc. Pela correspondência entre esses espaços
de luta no campo e na cidade, sempre há determinação de
um sobre o outro. As realidades locais são muito diversas, de modo que
tendem a predominar nas decisões finais as realidades das famílias
que estão fazendo a luta. Assim, as linhas políticas de atuação
são construídas a partir desses parâmetros. E as instâncias
representativas do MST carregam essa espacialidade e essa lógica, pois
um membro da coordenação ou da direção nacional
participa do processo desde o acampamento até as escalas mais amplas:
regional, estadual e nacional.
Com essas ações que contam com o apoio das articulações
políticas, os sem-terra procuram mudar a conjuntura para desemperrar
o processo de negociação. Todavia, nem sempre alcançam
seus objetivos. Quando as negociações chegam ao impasse, acontecem
conflitos violentos, como na Praça da Matriz, em Porto Alegre, e o massacre
em Eldorado dos Carajás (4).
Todos os acampamentos têm suas histórias nas lutas das famílias
sem-terra. Vale destacar pelo menos dois dos acampamentos históricos
do processo de formação e territorialização do MST:
o acampamento da Encruzilhada Natalino, em Ronda Alta, no Rio Grande do Sul,
e o acampamento dos capuchinhos em Itamaraju, na Bahia. Esses acampamentos sofreram
as mais diversas formas de pressão do governo e dos latifundiários,
mas persistiram e conquistaram a terra. Hoje são referências e
exemplos de resistência. Garantir a existência do acampamento, por
meio da resistência, impedindo a dispersão causada por diferentes
formas de violência, é fundamental para o sucesso da luta.
Salvar a ocupação, com a transferência das famílias
para fora do latifúndio, garantindo sempre um lugar para o acampamento,
faz parte da lógica da resistência. Quando acontece o despejo
essa palavra que também significa livrar-se de estorvo, em que as pessoas
são tratadas como coisas num ato de violência legitimada pela judiciarização
da luta pela terra (Fernandes,1997; Moreyra, 1998) as famílias
transferem o acampamento para outras áreas, como as margens das rodovias,
ou para terrenos cedidos pelas prefeituras ou por outras instituições.
Quando são despejadas das margens das rodovias, montam acampamentos dentro
de assentamentos próximos, esse território dos sem-terra, expressão
da conquista na luta e resistência.
A sustentação dos acampamentos é uma forma de pressão
para reivindicar o assentamento. E essa é uma prática do MST:
garantir o acampamento até que todas as famílias sejam assentadas.
Para os outros movimentos, essa prática não é tão
permanente. Muitas vezes negociam com o governo o assentamento e, acreditando
nas promessas, as famílias retornam para seus municípios. De modo
que, evidentemente, a maior parte dos assentamentos não se realiza. Também,
muitas famílias que permanecem acampadas desistem por uma série
de motivos, principalmente pela falta de perspectiva e pela violência
dos despejos e dos jagunços
Na política de implantação de assentamentos rurais do
governo federal, os acampamentos (com suas famílias que participam dos
trabalhos de base e estão se mobilizando para ocupar) são também
uma forma de pressão e uma contribuição dos sem-terra para
a realização do cadastramento das famílias beneficiárias,
bem como para intensificar a arrecadação das áreas. Essa
é uma prova insofismável de que as ações dos governos
federal e estaduais derivam das ações dos movimentos sociais.
Entre o tempo de acampamento e a conquista do assentamento (que configura a
territorialização), desenvolve-se a espacialização.
Ações importantes no processo de luta são as romarias,
as caminhadas e marchas. A marcha é uma necessidade para expandir as
possibilidades de negociação, para gerar novos fatos. Em seus
ensinamentos, por meio de suas experiências, os sem-terra tiveram diversas
referências históricas. Alguns exemplos utilizados na mística
do Movimento são: a caminhada do Povo Hebreu rumo à terra prometida,
na luta contra a escravidão no Egito; a caminhada de Gandhi e dos hindus
rumo ao mar, na luta contra o imperialismo inglês; as marchas das revoluções
mexicana e chinesa, entre outras (5). Dessa forma, os sem-terra ocupam a terra,
espaços de prédios públicos, espaços políticos
diversos para denunciar os significados da exploração e da expropriação,
lutando para mudar suas realidades.
4 A ocupação como forma de acesso à terra
Em pouco mais de duas décadas de luta, a ocupação tornou-se
uma importante forma de acesso à terra. Aproximadamente 77 % dos assentamentos
implantados nas regiões Sul e Sudeste, nos estados de Mato Grosso do
Sul e Goiás, e nos estados do Ceará, Alagoas, Sergipe e Pernambuco,
no período 1986-1997, foram originados por meio de ocupações
de terra, conforme pode ser observado no quadro 1.
ESTADO |
ORIGEM OCUPAÇÃO PELOS SEM-TERRA |
ORIGEM PROJETO DO GOVERNO |
SEM INFORMAÇÕES
|
Rio Grande do Sul |
159 |
0 |
0 |
Santa Catarina |
94 |
6 |
2 |
Paraná |
158 |
22 |
4 |
Sõo Paulo |
79 |
4 |
0 |
Rio de Janeiro |
45 |
3 |
0 |
Espírito Santo |
32 |
3 |
0 |
Minas Gerais |
80 |
16 |
0 |
Mato Grosso do Sul |
22 |
25 |
7 |
Goiás |
63 |
23 |
31 |
Ceará |
92 |
89 |
4 |
Alagoas |
21 |
7 |
6 |
Sergipe |
28 |
12 |
0 |
Pernambuco |
106 |
22 |
0 |
Fonte: DATALUTA, 1998
Evidente que a interpretação desses dados está associada
às análises feitas desde os processos de espacialização
e territorialização dessa luta, dos quais o MST participou e participa
intensamente. Quando o governo federal afirma ter assentado centenas de milhares
de famílias, na verdade, essa realidade foi construída predominantemente
por causa das pressões resultantes das ocupações de terra,
principalmente nas regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul.
Desde 1995 até abril de 1999 foram implantados 2.750 assentamentos com
299.323 famílias. No entanto, ocorreram 1.855 ocupações
com 256.467 famílias, ou seja, proporcionalmente o número de famílias
ocupantes representa 85% das famílias assentadas (6). É importante
destacar que parte do que o governo chama de assentamento são, na verdade,
áreas de regularização fundiária de terras de posseiros.
Para a região Nordeste e Centro-Oeste, os índices de famílias
ocupantes representam proporcionalmente 84% das famílias assentadas.
Para as regiões Sul e Sudeste, representam 273% e 175%, respectivamente.
Ou seja: 45.845 famílias lutaram pela terra na região Sul, enquanto
o governo assentou 12.272. Das 44.225 famílias que lutaram pela terra
na região Sudeste, os assentamentos implantados beneficiaram apenas 16.068
famílias. A maior atuação do governo aconteceu na região
Norte, onde assentou e ou regularizou posses de 98. 657 famílias (7).
Conforme o quadro 1, é no estado do Ceará que se localiza o maior
número de projetos de assentamentos criados pelo governo. Esse dado é
resultado, em grande parte, de políticas do governo estadual e da implantação
dos Projetos Cédula da Terra e Banco da Terra. Todavia, esse dado não
tem a mesma correspondência nos estados de Pernambuco e Minas Gerais,
onde esses projetos também foram implantados. Ainda, nos estados da região
Sudeste e Sul, onde estão localizados 24% do total de assentamentos implantados
até junho de 1999, cerca de de 92% dos assentamentos foi originado de
ocupações de terra.
Neste sentido, a luta pela terra impulsiona a política de assentamentos
rurais do governo federal. Por essa razão é que questionamos:
que reforma agrária? (Fernandes, 1998). Chamar de reforma agrária
essa realidade é interpretá-la na linguagem do Estado, das classes
dominantes. De fato, os assentamentos implantados são resultados da luta
pela terra, que têm contribuído para a efetivação
da política de assentamentos rurais. E a isso, muitos chamam incorretamente
de reforma agrária.
Por meio das análises realizadas até aqui, a questão agrária
no Brasil está longe de ser resolvida, enquanto for tratada como políticas
compensatórias. A luta pela democratização do acesso à
terra vem crescendo como demonstramos nesse trabalho. A estrutura fundiária
ainda permanece concentrada, e cresce o número de sem-terra, principalmente
pelo aumento do desemprego. Ainda existem mais de 4 milhões de famílias
a serem assentadas, conforme pesquisa recentemente realizada por Gasques e Conceição,
em 1999, considerando como público potencial para a reforma agrária:
pequenos proprietários (8), arrendatários, parceiros, ocupantes
e assalariados. Tendo como referências os dados do Censo Agropecuário
de 1995/1996, esse autores chegaram ao número de 4.514.000 famílias.
A partir desse dado, os pesquisadores estimaram a área necessária
para o assentamento, tendo como referência o módulo em hectares
da propriedade familiar: em torno de 160 milhões de hectares. No período
1979 a junho de 1999, foram assentadas 475.801 famílias. Ou seja, o equivalente
a 10.5% do público potencial, enquanto a área de assentamentos
equivale a 14% do que seria necessário.
E por meio dos processos de espacialização e territorialização,
os trabalhadores constroem as condições básicas de suas
existências, no processo de formação do campesinato brasileiro.
5 A reação do Governo Fernando Henrique Cardoso
As políticas governamentais têm estado a reboque das ações
dos movimentos camponeses. Embora o governo Fernando Henrique Cardoso tenha
implementado uma política de assentamentos rurais, de fato não
conseguiu diminuir o aumento das ocupações de terra. No campo
do enfrentamento, o governo compreendeu que não conseguiria superar as
condições de conflitos construídos pelos processos de espacialização
e territorialização da luta pela terra. Portanto, era preciso
construir políticas que impedissem a expansão desses processos.
Ainda, na década de 1990, com o avanço das políticas neoliberais
e conseqüentemente do desemprego estrutural, as ocupações
de terra se intensificaram, passando de 11 mil famílias, em 1991, para
79 mil famílias em 1999. Assim, a luta pela terra cresceu e dela começaram
a participar também os trabalhadores urbanos desempregados. São,
em grande parte, famílias que nas décadas passadas foram expulsas
da terra e que agora, sem perspectivas de trabalho na cidade, procuram nos assentamentos
rurais as condições dignas de vida.
O governo sempre tratou a questão com políticas compensatórias,
implantando assentamentos onde os sem-terra ocupavam os latifúndios.
Desde 1997, por meio de acordos com o Banco Mundial, o governo tem criado políticas
de compra e venda de terra, que foram nomeadas de Cédula da Terra e Banco
da Terra. Também criou a "reforma agrária pelo correio",
na tentativa de desmobilizar os movimentos sociais, tentando acabar com os trabalhos
de base e as ocupações. Todavia, essas políticas não
foram suficientes para desconcentrar a estrutura fundiária. Na realidade,
assistimos a um processo de implantação de assentamentos rurais
simultaneamente com a intensificação da concentração
fundiária, como pode ser observado nos censos agropecuários. Na
tentativa de controlar a questão agrária, impedindo o crescimento
das ocupações de terra, o governo também tem criado medidas
provisórias para criminalizar os sem-terra, não desapropriando
terras ocupadas, por um período de dois anos, e não assentando
as famílias que participam de ocupações.
Essa política torna ainda mais fortes as classes dos proprietários
e dos capitalistas, já que implica em tentar acabar com as ocupações
por meio da criminalização dessa ação, com a judiciarização
da luta pela reforma agrária (9). Também, em parte, o governo
abriu mão de sua competência e mercantilizou a questão da
terra, beneficiando ainda mais os latifundiários, que passam a receber
em dinheiro e à vista pela venda das terras, fortalecendo-os e enfraquecendo
os trabalhadores. Nesse sentido, o governo criou uma enorme desigualdade nas
negociações políticas, já que, dessa forma, é
o mercado que passa a ser a condição de acesso à terra
e não mais as ações dos trabalhadores e a intervenção
do Estado.
É isso que está sendo chamado de "reforma agrária"
pelo governo e por alguns cientistas que fazem parte de seu grupo de intelligentzia:
a implantação de assentamentos resultados das ocupações
de terra a regularização fundiária das terras de
posseiros e as terras compradas.
Para se falar em reforma agrária é preciso que exista
de fato uma política nesse sentido, um plano com objetivos e metas
para a desconcentração fundiária. O governo tem tentado
solucionar conflitos no campo com algumas desapropriações e com
compra de terra, respondendo às pressões das famílias sem-terra.
Se as famílias não ocuparem a terra, não há assentamento.
Ao denominar a atual política de assentamentos de reforma agrária,
ignora-se a história da luta pela terra e respectivamente os seus protagonistas.
Além disso, ao mesmo tempo em que uma família é assentada,
pelo menos duas são expropriadas ou expulsas. E mais: a supervalorização
das desapropriações, muitas vezes, possibilita ao latifundiário
adquirir uma área maior do que a que foi transformada em assentamento.
Dessa forma, a implantação dos assentamentos cresce simultaneamente
à concentração fundiária. Portanto, solucionar a
posse não passa de regularização fundiária. Assentamento
implantado como resultado de ocupação é luta pela terra.
Essas políticas e as compras de terra não são reforma agrária.
Manter o caráter da reforma agrária como política pública
para a democratização do acesso à terra, com a desapropriação
e a penalização dos latifundiários, de acordo com a Lei,
é uma questão de demarcar territórios teóricos e
políticos. Porque o debate, hoje, não é o de não
assentar as famílias sem-terra, mas da forma como vão ser assentadas.
Podemos compreender, assim, que a questão da reforma agrária vai
perdendo força ao mesmo tempo em que outras políticas ocupam esse
espaço, como o Banco da Terra, e são denominadas de reforma agrária.
O conceito foi banalizado e tudo se tornou reforma agrária. Nesse contexto,
na mídia em geral, o governo faz propaganda afirmando que está
fazendo uma coisa, enquanto faz outra.
Da mesma forma como o governo se apropria de conceitos e tenta transfigurá-los,
também procura dominar espaços políticos, como, por exemplo,
no estabelecimento de políticas públicas. Nesse espaço
acontecem importantes embates entre o Governo e o MST. Por sua lógica,
os sem-terra procuram participar de todo processo de luta. Assim, as políticas
geradas pelo Governo, em qualquer setor do desenvolvimento dos assentamentos,
são um espaço importante a ser ocupado. Isso significa trabalhar
para o avanço de seus princípios, lutar e construir novas experiências.
O desafio do Governo é impedir que os sem-terra participem dessa forma.
O seu objetivo é fazer com que o seu programa não seja apropriado
politicamente pelo MST. Foi por essa razão que o governo acabou com o
PROCERA Programa Especial de Crédito para a Reforma Agrária,
e com o programa de assistência técnica Lumiar. Sem nenhuma
outra proposta, deixou milhares de agricultores sem assistência técnica,
porque esse programa estava servindo para fortalecer os trabalhadores.
O objetivo do governo, com o seu programa, é controlar a luta dos trabalhadores
rurais em um determinado espaço político, o espaço do capital.
Essa é uma ação estratégica do Governo, porque atinge
princípios e tenta aniquilar os valores de uma instituição
histórica que é o campesinato. As teses elaboradas pelo grupo
de intelligentzia do governo, que defende a integração subserviente
do campesinato ao capital, contribuem para facilitar esse aniquilamento. Assim
a expropriação dos trabalhadores rurais não é somente
resultado da lógica desigual do capital, mas também das teorias
que possibilitam a elaboração de políticas para ativar
esse processo. Com essas políticas, o governo tornou-se o maior adversário
do MST. Nesse enfrentamento entre governo e MST, têm-se intensificado
os conflitos no campo. E de forma selecionada. Somente no ano 2000, o MST sofreu
em torno de 180 processos e 10 militantes foram mortos. A partir de uma análise
qualitativa, observa-se que a violência no campo brasileiro está
centrada nos que lutam pela terra e contra o projeto do Governo. Essa realidade
efetivamente fez com que diminuíssem os números das ocupações,
do que o Governo tanto se vangloria. Mas é importante destacar que a
diminuição das ocupações está relacionada
com a intensificação de diferentes formas de violência e
da criminalização dos sem-terra, com a cerca da judiciarização.
Na luta pela terra, a ocupação comprova que o diálogo
não é impossível. Ao ocupar a terra, os sem-terra vêm
a público e iniciam negociações e enfrentamentos com todas
as forças políticas. Ao ocupar espaços políticos,
reivindicam seus direitos. Quando o governo criminaliza essas ações,
corta o diálogo e passa a dar ordens. Tenta destruir a luta pela terra
sem fazer a reforma agrária.
A luta contra o capital é uma forma de resistência dos camponeses.
Para romper com essa perspectiva, o governo procura tratar a questão
agrária exatamente no campo do inimigo: o território do capital.
Tenta destruir, assim, as formas de luta dos sem-terra, exatamente na dimensão
política da luta pela terra (10). Isso significa a exclusão política
que pode resultar na intensificação da luta e ou na subserviência
dos movimentos sociais do campo, o que pode reprimir ou eliminar a organização
dos trabalhadores. Esse momento coloca em questão, mais uma vez, a resistência
dos movimentos camponeses. Em diversos momentos de nossa história foram
criadas, pelo governo e pela elite, formas para destruir o movimento camponês.
Assim como aconteceu com Canudos, com as Ligas Camponesas, hoje há uma
nova forma política. Aceita-se o campesinato, desde que ele se aceite
como outro, em seu "destino" de subordinação.
Esses novos elementos da questão agrária nos colocam desafios.
Ainda não se tem uma análise mais profunda dos problemas e dos
impasses gerados. No próximo ano, serão comemorados 20 anos das
lutas da Encruzilhada do Natalino (11), quando o MST estava em gestação.
Na resistência que possibilitou rasgar o cerco do então coronel
Curió, a mando do general Figueiredo, está o sentido da luta camponesa.
Das formas de resistência serão colhidas as experiências
e as lições que permitirão romper com as novas cercas que
hoje estão sendo construídas.
Bibliografia
Fernandes, Bernardo Mançano. MST: formação e territorialização.
São Paulo: Hucitec, 1996.
Fernandes, Bernardo Mançano. A judiciarização da luta
pela reforma agrária. In GEOUSP Revista de pós-graduação
em Geografia. São Paulo: Departamento de Geografia da FFLCH-USP, 1997,
p. 35-9.
Fernandes, Bernardo Mançano. Que Reforma Agrária ? In A Questão
Agrária na Virada do Século. Vol. II Mesas Redondas. XIV
Encontro Nacional de Geografia Agrária. Presidente Prudente, 1998.
Fernandes, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 2.000.
Gasques, José Garcia. Conceição, Júnia Cristina
P. R. da. A Demanda de terra para reforma agrária no Brasil. Rio de Janeiro:
www.dataterra.org.br, 1999.
Hobsbawm, Eric. Pessoas Extraordinárias. São Paulo: Paz e Terra,
1998.
Kautsky, Karl. A questão agrária. São Paulo: Nova Cultural,
(1899) 1986.
Lênin, Vladimir Ilich. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia.
São Paulo: Nova Cultural, (1899) 1985
Martins, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 1981.
Moreyra, Sérgio Paulo. As novas caras da violência no campo brasileiro.
In Conflitos no campo Brasil 97. Goiânia: CPT, 1998, p. 7-21.
Oliveira, Ariovaldo Umbelino de. A agricultura camponesa no Brasil. São
Paulo: Contexto, 1991.
Stedile, João Pedro e Fernandes Bernardo Mançano. Brava Gente:
a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 1999.
Thompson, Edward H. A Formação da Classe Operária Inglesa.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
Thompson, Edward H. Costumes em comum Estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
1. Como por exemplo o Decreto 35.852 do Governo do Estado de São Paulo.
Em seu artigo 1°, § 1° determina que as famílias não residentes há pelo menos
dois anos na região, não podem ser assentadas.
2. Entre os critérios determinados pelo governo estão: ser trabalhador
rural, não ser proprietário de terra, não ser funcionário público etc.
3. Raros exemplos são os municípios de Mirante do Paranapanema – SP,
Ronda Alta – RS e Pontão – RS, onde os sem-terra conquistaram a maior parte
dos latifúndios.
4. Ver a respeito, Fernandes, 2000.
5. Ver a respeito: Stedile, João Pedro e Fernandes, Bernardo Mançano.
Brava Gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 1999, p. 149-155.
6. Ver a respeito, Fernandes, 2000.
7. Ver a respeito, Fernandes, 2000.
8. Pequenos proprietários de imóveis cuja área não alcance a dimensão
do módulo da propriedade familiar.
9. Respeito do processo de judiciarização, ver Fernandes, 1997.11 Interessante
como alguns membros do governo procuram enfatizar que é preciso "despolitizar"
a reforma agrária. Traduz-se nesse discurso a politização do programa do governo.
10. Interessante como alguns membros do governo procuram enfatizar que
é preciso "despolitizar" a reforma agrária. Traduz-se nesse discurso a politização
do programa do governo.
11. Ver a respeito, Fernandes, 2000.
Nota do editor Bernardo Mançano Fernandes, geógrafo, professor
e pesquisador da Universidade Estadual Paulista (UNESP) Campus de Presidente
Prudente, São Paulo. Coordenador do NERA (Núcleo de Estudos, Pesquisas
e Projetos de Reforma Agrária), onde está implantando o Dataluta
(Banco de Dados da Luta pela Terra). Membro do Setor de Educação
do MST. Membro da diretoria da Associação dos Geógrafos
Brasileiros (AGB), 1986/1994. Autor de MST: Formação e territorialização
(Editora Hucitec) e A formação do MST no Brasil (Editora
Vozes). PhD pela Universidade de São Paulo (USP). bmf@prudente.unesp.br
|